NO ROL DOS CULPADOS:
PODER E CRIMINALIZAÇÃO DO CANDOMBLÉ NA FEIRA DE SANT’ANNA NOS PRIMÓRDIOS DA REPÚBLICA
Josivaldo Pires de Oliveira
Doutorando – CEAO/UFBA
Em um interessante artigo sobre documentos cartoriais e preservação de arquivos Robert Slene fez uma provocação que, com certeza, causou inquietação nos pesquisadores que trabalham com documentação de arquivo, inclusive, documentos manuscritos. Slene fazia referência a queima de documentos históricos depositados em arquivos cartoriais, a mando do então ministro da Fazenda Rui Barbosa, no final do século XIX. A preocupação de Robert Slene era que, pelo trágico estado de conservação de nossos arquivos, o que não foi incinerado no início da República brasileira poderá sê-lo agora.
Discutir, então, sobre documentos manuscritos e os múltiplos olhares de caráter investigativo que possam ser lançados sobre eles no momento em que a comunidade de pesquisadores tem se manifestado de forma mais sistemática através, inclusive, da organização de grupos de pesquisa que se ocupa com a recuperação da memória histórica através da preservação desses documentos, é salutar. Para evidenciar a importância da preservação de documentos manuscritos, preocupação manifestada no citado texto de Robert Slene, recuperei dos empoeirados maços de documentos da Secretaria de Segurança Publica depositados nos arquivos do Centro de Documentação e Pesquisa da Universidade Estadual de Feira de Santana, uma história protagonizada por uma curandeira que revela os bastidores da relação de poder entre a justiça, revestida do poder burocrático, e adeptos do candomblé e saberes mágicos de cura na então vila de Feira de Sant’ Anna na primeira década republicana.
Ainda no calor da instalação do regime republicano no interior da Bahia, um crime “bárbaro” ocorreu em agosto de 1904. Para uma primeira vista este seria um caso isolado na pacata e bem quista urbe de Feira de Sant’ Anna. Entretanto, não se tratava de um simples crime como outros que ocorriam. Era uma chacina que preocupava as autoridades e que não deveria ser tolerada pelo espírito republicano: quatro mortes em um terreiro de candomblé que funcionava na residência de uma das vítimas de nome João Evangelista Pires; e o mais agravante: a ré era reincidente e tratava-se de mais um crime promovido pela prática “bárbara” da feitiçaria, conseqüente da ingestão de suas beberagens. Essa é a versão explicitada nas peças dos Autos correspondente do processo movido pela justiça feirense contra a curandeira Maria Carolina da Cruz e seus pares. O objetivo aqui é, então, evidenciar a criminalização das práticas de candomblé, na região de Feira de Sant’ Anna, como conseqüência da repressão aos saberes de cura denominado curandeirismo.
POLÍCIA, CANDOMBLÉ E CRIMINALIZAÇÃO
A prática da religião de matrizes africanas em Feira de Sant’ Anna, remonta ao século XIX, como consta na documentação que tenho consultado para a elaboração de minha tese de doutoramento. O processo crime mais antigo que encontrei data de 1901, no qual cita um candomblé já bastante conhecido na região. Como se trata de um terreiro com certa notoriedade implica recuar mais alguns anos, podendo sugerir a prática do candomblé na Feira de Sant’ Anna dos oitocentos.
Ao aflorar o século XX, a imprensa feirense registrou a prisão de algumas pessoas envolvidas com prática de candomblé, acusadas também de “feitiçaria”. Atente-se para a empolgada narrativa do articulista:
Prisões em Penca
No Limoeiro, povoação da freguesia dos Humildes, deste termo, em noite de 16 para 17 do corrente Victorino Araújo da Silva, alli residente, Pedro Alves de Almeida e mais vinte e tantas pessoas, que foram já soltas, ficando detidos os dois primeiros.
O motivo da prisão constatamos, ter sido dança do “candomblé” e feitiçaria.
A prisão ocorreu em maio de 1901, ainda no calor do novo Código Penal, sancionado em 1890. A notícia informa que das pessoas recolhidas pela polícia, naquela batida, apenas duas foram encarceradas. De fato o crime foi lavrado pela justiça feirense como “curandeirismo”, sendo indiciado os senhores Victorino Araújo da Silva e Pedro Alves de Almeida, como informou o articulista. A acusação: “dar remédios e tocar candomblé”.
A partir de então parece ter a polícia feirense desenvolvido uma campanha sistemática de repressão ao candomblé sob o jugo da perseguição às práticas de cura vinculadas aos saberes mágicos de caráter afro-religioso, citados na então legislação penal como crimes contra a saúde pública, em seu art. 158. Este foi o caso de Maria Carolina da Cruz , conhecida por Lina, a curandeira.
Em agosto de 1904 o que parecia ser uma simples celebração em um terreiro de candomblé, localizado no distrito de Almas, atual município de Anguera, passou a um grande problema para a curandeira Lina. Depois de um estranho desentendimento entre alguns participantes da festa, se desenrolou um conflito corporal entre os mesmos atingindo o fatal índice de quatro mortos. Lina foi responsabilizada pelas mortes, acusada de ter ministrado suas conhecidas “beberagens”.
O promotor publico da Comarca no desempenho de suas attribuições e baseado nos depoimentos por traslado juntos a esta, vem denunciar da conhecida curandeira (sic) de nome Maria Carolina da Cruz, vulgo “Lina”, residente no districto das Almas, deste termo, por haver no dia 13 de agosto do anno próximo passado, n’aquelle districto, promovido um “candomblé” ministrando substancias noscivas a saúde, das quais servindo-se (...) alteraram-lhes de tal modo as suas funções physiologicas que, travada a lucta entre os mesmos, no pressuposto de quantos se lhes apresentavam eram bichos, resultou a morte dos quatro últimos, em conseqüência dos ferimentos recebidos por cacete, tição de fogo e as mais que se lhes deparava.
O desentendimento referente poderia ter uma outra origem que não o efeito do que se diz ter Lina ministrado para os envolvidos beberem: “substancias noscivas a saúde”. O fato de ser ela uma conhecida curandeira e o caso ter ocorrido no interior de um terreiro de candomblé talvez tenha tornado mais simples o trabalho dos prepostos da justiça e da polícia: precisavam resolver os crimes e ao mesmo tempo responder às solicitações de repressão aos candomblés e as práticas dos curandeiros, que por sua vez estavam ligados, no caso da vila de Feira de Sant’ Anna, ao culto afro-brasileiro.
Curandeiro, feiticeiro ou outro adjetivo que faça referência aos saberes mágicos de matrizes africanas, vinculado às práticas afro-religiosas, deixou muitas pistas em Feira de Sant’ Anna. A maior parte dos processos criminais, identificados nos arquivos feirenses, movidos contra curandeiros identifica a prática de candomblé. Em alguns destes o réu é indiciado apenas por bater candomblé sem a autorização do delegado de polícia. Há, então, um elemento importante a ser considerado no tocante à característica das práticas de repressão policial aos adeptos do culto afro-brasileiro em Feira de Sant’ Anna, constatado inclusive no caso de Lina: as prisões não eram realizadas unicamente por bater candomblé, mas principalmente por exercerem os saberes mágicos afro-brasileiros identificados como “feitiçaria”, “magia negra” e “curandeirismo”. O candomblé era apenas um elemento agravante.
No final do século XIX, Nina Rodrigues acusou que essa incessante repressão poderia ser justificada pelos diferentes medos que tinha a sociedade católica por essas práticas:
O medo do feitiço como represália pelos maus tratos e castigos que lhe eram infligidos, em primeiro lugar; o temor supersticioso de práticas cabalísticas de caráter misterioso e desconhecido; [sic.] em segundo, o receio, aliás bem fundado, de que as práticas e festas religiosas viessem obstar a regularidade do trabalho e justificassem a vadiagem; em terceiro, a cobição prepotente do poder do senhor que não admitia no negro outra vontade que não fosse a sua, tais foram os verdadeiros motivos porque, mesmo quando se concedeu licença aos negros para se divertirem ao som monótono do batuque, os candomblés eram, de contínuo, dissolvidos pela violência, os santuários violados e os fetiches destruídos.
Atualmente, alguns leitores, um tanto quanto desavisados, ridicularizam a abordagem de Nina Rodrigues, limitando-se aos preconceitos característicos do pensamento social de sua época. Entretanto, passagens da obra como a citada a cima, com certeza, não seria alvo das referidas depreciações, pois sua observação corresponde em muitos aspectos o que poderia ter ocorrido no processo de abordagem judiciária ao que aconteceu no terreiro de candomblé no distrito de Almas.
É consenso entre muitos estudiosos que a preocupação das elites locais com os saberes mágicos de cura, ou seja, com as práticas do curandeirismo, no Brasil, remetem ao período colonial e, no caso de Feira de Sant’ Anna, existem registros para o século XIX. Rollie Poppino, por exemplo, citando uma fonte de 1894, afirmou que apesar da perseguição sofrida pelos curandeiros, “a prática do curandeirismo continuou nas zonas rurais do município” em todo período contemplado por sua pesquisa, a saber: de 1860 a 1950. Infelizmente, por se tratar de uma nota de roda-pé, o autor não forneceu mais informações a esse respeito, quem sabe ajudaria a entender melhor o que aconteceu naquele candomblé, em agosto de 1904. Seguindo as ligeiras pistas deixadas por Poppino, foi possível revelar importantes fontes a cerca da repressão ao curandeirismo associado ao candomblé nessa região, infelizmente os limites desse trabalho não me permite apresentá-las.
A FORMAÇÃO DA CULPA E A RESISTÊNCIA DA CURANDEIRA
A prática do candomblé não era crime, mas considerada agravante, pois a mesma era entendida como legitimadora do curandeirismo e como não era contemplada pela criminalização no Código Penal, em vigência, escapava a uma ação mais explícita da polícia. Neste caso, os adeptos do culto afro-religioso respondiam processos judiciais por crimes contra a saúde pública, acusados de praticarem indevidamente a arte de curar. Representavam, por isso mesmo, essas ações, a criminalização da prática de candomblé. Eis uma suposição que deve ser considerada no caso de Lina, a curandeira, pois a mesma fora processada pelo Tribunal do Júri da Comarca de Feira de Santa’ Anna, por crime contra a saúde pública, na verdade tratava-se da prática de cura ligado ao universo afro-religioso.
Por esses fundamentos [...] procedente a denuncia de folhas contra Maria Carolina da Cruz, para pronucial-a, como pronuncia, [...] no grao maximo do art. 158 único do Código Penal visto concorrerem as circunstancias aggravantes dos 4°, 6° e 7° do art. 39 do dito Código e sujeita a prisão e livramento.
O escrivão passe mandado de prisão contra a denunciada e lance o seo nome no rol dos culpados; pagas pela norma os custos, em que a condena.
Formada a culpa, enquadrada no grau máximo do art. 158, Lina, a curandeira, teve o seu nome lançado no “rol dos culpados”. Curiosamente os outros indivíduos apontados como pares de Lina e citados no processo não sofreram sanções penais de tamanha gravidade: crime contra a saúde pública. Ao que parece essa era mais uma tentativa de encarcerar a notória curandeira, que havia driblado as autoridades já algumas vezes.
Durante o desenrolar do processo foram ouvidas seis testemunhas sendo que todas elas reconheceram Lina como curandeira às vezes denominada feiticeira, pelo menos na pena do escrivão. Entretanto, o depoimento da segunda testemunha, o senhor Auto Pereira do Nascimento, morador na freguesia do Bomfim, atual município de Bomfim de Feira, afirmou que os envolvidos estavam bastante alcoolizados, por mais que o mesmo também afirmasse que as vítimas consumiram as “beberagens preparadas pela feiticeira de nome ‘Lina’”. No mesmo fólio que consta esse depoimento o escrivão registra que Manoel Cândido Pires, um dos acusados no processo, afirmou que “fez essas mortes suppondo que estava dando em hichas”: ou seja a origem do conflito pode estar em eventos anteriores à beberagem ministrada pela curandeira.
Essas especulações não invalidam o resultado do processo nem tão pouco coloca em dúvida a acusação da promotoria e nem é essa a idéia aqui intentada. O que busco provocar na leitura do documento é simplesmente outras possibilidades de interpretação do fato. Como por exemplo, porque não considerar, a partir do depoimento das testemunhas, a possibilidade de embriaguez e da própria rixa existente entre os envolvidos. O fato é que a sentença de Maria Carolina da Cruz foi lavrada e o seu nome lançado no “rol dos culpados”. Vale saber, agora, se a mesma permitiu a execução penal:
Certifico eu escrivão, abaixo assignado, que dei ciência ao Doutor Promotor Publico Bucão Vianna, do despacho de pronuncia retro, deixando de intimar a [de]nunciada por ignorar o seu paradeiro, tendo contra a mesma passado mandado de prisão em duplicata e lançado a folhas, digo, lançado o nome da mesma no rol dos culpados a folhas19 verso.
Lina não esperou para ver!
É possível que a curandeira tenha sido mais uma vítima da repressão policial, assim como ocorreu com os candomblés na capital baiana. Julio Braga ao analisar o processo judicial movido pela justiça da capital contra o pai-de-santo Nelson José do Nascimento apontou a fuga como resistência, ou seja: “não respeitar o árbitro da justiça”.
Parece que esta era uma prática corrente entre os sacerdotes e mestres da arte de curar vinculados ao culto afro-brasileiro na Bahia republicana. Pois Lina, assim como Nelson, não esperou para ver cumprir o mandado de prisão emitida pela justiça feirense e pelo que consta do próprio processo essa não era a primeira vez. A curandeira não reconheceu a autoridade que criminalizava o exercício de um saber ancestral representativo de sua identidade cultural, historicamente constituída: o saber mágico afro-religioso de curar.
À GUISA DE CONCLUSÃO
O que se conclui é que Maria Carolina da Cruz foi processada incursa no art. 158 do Código Penal Brasileiro e o candomblé mais uma vez citado em um processo criminal que nas entrelinhas insinua o culto afro-religioso como locos de criminalidade, ou pelo menos de transgressão. Mas os adeptos do culto e mestres da cura sempre encontravam suas diferentes formas de resistência e o não reconhecimento do arbitro da justiça foi uma das mais recorrentes. A preservação de documentos manuscritos nos arquivos históricos cumpre uma função indispensável para a recuperação de histórias como a da curandeira Lina, possibilitando assim uma melhor compreensão da dinâmica de mudança histórica que caracteriza a evolução de uma sociedade e garantindo uma maior competência para nós cidadãos do presente entender os significados do passado, os quais são pressupostos da constituição de nossa identidade.